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Colunas
17/10/2025 - 16h49
Entre vírgulas e varandas
Confira a coluna escrita por Emerson Miranda

Há silêncios que não nos calam — apenas nos tornam mais atentos.

Não são vazios: são intervalos entre uma percepção e outra. E é nesses instantes, rarefeitos e quase imperceptíveis, que o mundo se inclina levemente para nos contar algo.

Mas ele só fala quando a gente desaprende a pressa.

 

Foi num desses instantes que percebi que havia algo errado comigo — ou melhor, ausente.

Não era tristeza, nem desânimo. Era o oposto: uma sensação boa demais para ser descrita, mas que eu havia deixado passar muitas vezes por distração.

Tive essa consciência caminhando com Emanuel, meu filho, numa rua qualquer do bairro. O sol dobrava a esquina, como se também voltasse pra casa.

E eu, sem esperar nada, fui surpreendido pelo tudo.

 

As cigarras cantavam como se o verão fosse eterno, mas sem alarde — seu canto parecia parte da paisagem, não um adorno. Algumas pessoas varriam calçadas com a vassoura em ritmo de fôlego. Outras apenas sentavam-se nas varandas com o corpo entregue e o olhar sem tarefas. Um carro chegava. Um abraço acontecia. Um cheiro de arroz escapava de uma panela. O tempo parecia não saber que existiam relógios.

 

E eu, ali no meio disso tudo, percebi que não era mais o mesmo.

Não por uma transformação súbita — mas por estar reaprendendo a me encantar.

 

“Nada é pequeno no amor. Quem espera as grandes ocasiões para provar a sua ternura não sabe amar.” — dizia um tal de La Rochefoucauld, que talvez nunca tenha andado com um filho pela rua de um bairro mineiro ao fim da tarde, mas sabia das coisas.

 

Emanuel, com sua forma de olhar tudo pela primeira vez, me deu uma aula muda sobre presença. Ele olhava as folhas caídas como quem lê um livro. Tocava os muros como se conversasse com eles.

Eu, por dentro, ia me desarmando.

 

Comecei a perceber que a vida não é uma sequência de eventos espetaculares — ela é o intervalo entre um portão abrindo e um passo distraído.

É o copo de alumínio no muro, é a sandália esquecida na grama, é a cortina dançando com o vento.

E, acima de tudo, é o que não se comenta — porque não se sabe nomear.

 

O mundo, naquele momento, não exigia de mim respostas, discursos ou presença de palco.

Ele só queria que eu me deixasse ver.

 

Havia um homem empurrando uma bicicleta. A filha vinha no cano da frente, com os pés no alto e o riso desorganizado. Nenhum dos dois tinha destino. E pensei que talvez o sentido da vida seja mesmo perder-se com leveza.

 

“O essencial é invisível aos olhos”, disse Antoine de Saint-Exupéry, mas naquele instante eu pensei diferente: o essencial está visível, escancarado, quase gritante — só que nós olhamos demais para o centro das coisas. E o essencial sempre mora nas bordas.

 

Emanuel me puxou pela mão. Queria me mostrar um passarinho, ou talvez uma pedra. Não importava. Ele queria me mostrar algo que havia visto e, ao mesmo tempo, algo que estava nele. Porque é assim que as crianças compartilham o mundo: não com explicações, mas com olhos.

 

Foi então que me senti grato. Não um agradecimento ensaiado, nem daqueles que se dizem antes da sobremesa. Era uma gratidão que nem sabia bem para quem endereçar: para Deus? Para o tempo? Para o chão que me sustentava?

Não sei. Só sei que era real.

 

E pensei em como as pessoas têm pressa de tudo. Pressa de crescer, de amar, de vencer, de entender. Pressa de sentir sem se comprometer com o que sentem. E, na pressa, se esquecem de olhar para os detalhes — esses que não fazem barulho, mas sustentam a arquitetura secreta do mundo.

 

“O que é verdadeiro em nós escapa às palavras”, escreveu Clarice Lispector. E talvez por isso eu tenha sentido tanto, mas dito tão pouco. Porque há emoções que se escrevem com presença, não com tinta.

E há dias que não cabem no calendário — só no peito.

 

Emanuel riu de algo que só ele viu. E eu sorri junto. Não importava o que era. Era real. Era agora.

Naquele instante, entendi que viver não é colecionar acontecimentos — é repousar o coração nos instantes em que nada nos exige, mas tudo nos oferece.

 

A rua ia se apagando devagar. As janelas acendiam seus pequenos sóis domésticos. E cada luz que se acendia me lembrava de que habitar o mundo não é possuir espaço, mas permitir-se tocá-lo com lentidão.

 

Na volta pra casa, não levei registros. Não fiz fotos.

Guardei tudo entre vírgulas — essas pausas invisíveis que dão ritmo ao que é eterno.



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