Naquela manhã, como tantas outras, fui à rua levar o lixo. Um gesto mínimo, automático, quase mecânico. Mas o mundo, às vezes, tece grandiosidades com fios miúdos. Abri o portão devagar, ainda com o peso do sono escorrendo pelos ombros, e, no movimento de empurrar o galho da roseira que se inclina desajeitada para o caminho, vi uma borboleta levantar voo.
Aquela súbita dança aérea — breve — interrompeu o ritual da manhã como uma nota fora do compasso que, por destoar, se torna inesquecível. O inseto traçou no ar um arco tão leve quanto um aceno de despedida, e sua partida, silenciosa e azulada, pareceu tocar algo escondido dentro de mim.
Havia algo onírico naquele voo. Uma recordação vaga veio à tona, não exatamente um acontecimento, mas um sentimento — a sensação de já ter sonhado com aquela cena, ou com algo parecido: uma borboleta que surgia de um livro aberto. Um livro que não existia, mas é como se tivesse sido lido, vivido, ou escrito por minhas próprias mãos em algum lugar entre a vigília e o delírio.
Fiquei ali, parado por um instante, sentindo o ar fresco tocar minha pele como quem vira página de um tempo. A rua ainda adormecida, o céu entre azul e cinza, e os primeiros sons esgueiravam-se entre as casas. Era como se tudo respirasse mais devagar.
Foi então que as palavras começaram a cantar em mim.
Malambude
Manalitafe.
Diziam que assim se dizia "borboleta" em uma língua de longe, da África Ocidental, onde o som das palavras ecoa como passos sobre tambores. Diziam, também, que significava algo como “o professor abre o livro pra gente”. Apócrifo, talvez. Poético, certamente.
E o mais belo é que soava verdadeiro, não porque estivesse escrito em algum dicionário confiável, mas porque algo dentro de mim — um canto profundo, escondido entre o peito e a lembrança — assentia com reverência.
Aquela borboleta que voara da roseira, recém-saída do seu esconderijo noturno, foi, por um segundo, todas as borboletas que já existiram. Foi farfalla, com o som do bater de asas leve como sílabas em fuga. Foi papillon, sibilante como sussurro francês. Foi butterfly, como o deslizar de uma palavra sobre manteiga derretida. Foi também malambude manalitafe, uma frase inteira travestida de voo, de descoberta, de livro que se abre.
“A palavra é o tempo tornado forma”, escreveu Octavio Paz. E ali estava a prova disso: uma palavra inexistente (ou, quem sabe, apenas desconhecida), dançando em mim como uma partitura de vento.
Voltei para dentro de casa sem dizer nada. Preparei o café com vagar, como quem sintoniza os sentidos. Enquanto a água fervia, observei o tilintar das xícaras, o aroma do pó se espalhando no ar e pensei nas muitas coisas que nos escapam diariamente — instantes pequenos que passam à margem da consciência, mas que, se percebidos, nos atravessam como poesia escondida em parágrafos de um dia comum.
Há quem pense que os encantos estão nos grandes acontecimentos, mas, como escreveu Rainer Maria Rilke, “é preciso ter paciência com o que ainda não foi revelado, e aprender a amar as perguntas”. E foi isso que aquela manhã me deu: uma pergunta sem resposta, um gesto mínimo que abriu em mim o livro do dia.
Ao final, o lixo foi levado, o portão fechado, a rotina seguiu. Mas algo em mim havia se deslocado — não por causa da borboleta em si, mas por tudo o que ela me disse ao não dizer. Ao apenas voar.
“Toda manhã é uma página em branco esperando a escrita do espanto.” Escrevi essa frase, ainda com os olhos presos à janela, e senti que ela era verdadeira.
Penso agora que há dias em que a vida inteira cabe entre o abrir de um portão e o pousar de um silêncio. Em que a palavra não é apenas instrumento de comunicação, mas de encantamento. Em que lembramos que a linguagem é também música, e que existem palavras que não explicam — mas despertam.
Talvez malambude manalitafe nunca tenha sido dita por nenhuma boca africana. Mas ela foi pronunciada, naquela manhã, pelo meu coração. E isso basta. Porque, ao fim, o mundo é feito de coisas que acontecem e de outras que apenas poderiam ter acontecido — e as duas têm o mesmo poder de nos transformar.
E
assim, uma borboleta abriu meu livro naquele dia. E nele estava escrito que há
mil formas de se acordar para o que vale a pena.
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