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Colunas
06/11/2024 - 08h05
Tempus fugit, amor manet
Confira a coluna do Emerson Miranda na última edição da Gazeta: 4.266

O sol amanhece lentamente, tocando o horizonte pálido deste 2 de novembro, derramando um ouro suave sobre o campo santo, onde túmulos repousam como antigos adormecidos. É o Dia de Finados, dia de silêncio profundo e palavras que murmuram baixinho. Passo entre as lápides, o som dos passos abafado pela terra úmida, enquanto crisântemos se empilham em montes, preenchendo vazios com uma beleza contida, exalando um perfume de memórias.

 

"A vida dos mortos está na memória dos vivos", escreveu Cícero, e parece que cada vela acesa, cada flor cuidadosamente pousada, ecoa essa verdade. O Dia de Finados vai além da celebração religiosa; é um dia em que atravessamos a sombra do tempo, ousando nos encontrar, face a face, com o coração de nossas lembranças. Ali, entre lápides silenciosas, sinto que não estamos apenas homenageando quem já se foi, mas dialogando com o mistério da nossa própria finitude, em busca de um vislumbre dos limites do que somos.

 

Este ritual é antigo, pleno de força. Veio com os portugueses, cruzando oceanos até o Brasil, onde se misturou à fé dos que aqui já viviam e dos que vieram depois, tornando-se um caldo cultural, um sincretismo único. A devoção aos Fiéis Defuntos se encontra com as vozes dos ancestrais nas religiões afro-brasileiras. Entre velas e oferendas, algo maior se manifesta: uma ponte invisível que costura o passado ao presente, uma teia de memórias sempre tecida, fio a fio.

 

Famílias se juntam no cemitério, ora em silêncio, ora em vozes baixas, contando histórias dos que partiram. “Os mortos não morrem”, disse Guimarães Rosa, “eles ficam encantados”. E a frase ganha vida diante de meus olhos, no brilho das conversas e nos sorrisos contidos ao recordar alguma história de infância que o ente querido protagonizou. O tempo se curva à lembrança, e uma chama arde não só nas velas, mas nos corações de quem ficou.

 

Cada nome gravado nas lápides ressoa como eco de uma vida cheia, uma soma de sonhos e medos, amores e quedas. Penso na fragilidade de existir, mas também na beleza que a envolve. Quando visitamos os mortos, não é só a perda que lamentamos; celebramos também as histórias que juntos trilhamos. Cada flor deixada, cada vela tremulando ao vento, carrega a promessa de que não esqueceremos, de que o que fomos juntos ficará enquanto houver memória.

 

No Brasil, esse sincretismo tão próprio faz do Dia de Finados um encontro do sagrado com o profano. Nos terreiros de Umbanda, os ancestrais são lembrados não apenas com tristeza, mas com respeito e gratidão. Diante das sepulturas, percebo que estamos todos unidos por uma linha invisível que nos faz humanos, que nos lembra da nossa breve passagem, breve mas repleta de significados.

 

“A morte não é nada, eu apenas passei para o outro lado do Caminho”, escreveu Santo Agostinho, talvez nos oferecendo o consolo que buscamos neste dia. Finados é dia de atravessar caminhos. De estender a mão ao invisível e sentir a presença de quem já se foi, de perceber que, embora a morte leve a presença física, ela jamais apagará os rastros de amor que ficaram. Cada gesto, cada palavra, cada silêncio partilhado: tudo isso permanece, sutilmente gravado nas lembranças que nos habitam.

 

No horizonte do cemitério, crianças correm, tentando entender o sentido daquele lugar, daquele dia. Elas, com suas risadas e curiosidade, nos lembram que a vida é um ciclo que se renova. O Dia de Finados é também uma homenagem à própria vida — ao que fomos e ao que deixaremos de ser, ao legado invisível que semeamos naqueles que ficam.

 

Na tarde que avança, as velas tremulam, algumas apagam ao vento, outras resistem. Assim é a nossa existência: uma chama que se ergue contra o sopro inevitável do destino. Mas enquanto uma única vela estiver acesa, enquanto houver memória, os que partiram nunca estarão de todo perdidos. E este é talvez o maior milagre do Dia de Finados — a certeza de que, mesmo quando a jornada parece solitária, não caminhamos sós. Estamos todos entrelaçados na delicada trama do tempo, e a memória nos mantém vivos, mesmo depois do último adeus.

 

“– O tempo foge, o amor permanece.”



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