O sol amanhece lentamente, tocando o horizonte pálido deste 2 de
novembro, derramando um ouro suave sobre o campo santo, onde túmulos repousam
como antigos adormecidos. É o Dia de Finados, dia de silêncio profundo e
palavras que murmuram baixinho. Passo entre as lápides, o som dos passos
abafado pela terra úmida, enquanto crisântemos se empilham em montes,
preenchendo vazios com uma beleza contida, exalando um perfume de memórias.
"A vida dos mortos está na memória dos vivos", escreveu Cícero, e parece que cada vela
acesa, cada flor cuidadosamente pousada, ecoa essa verdade. O Dia de Finados
vai além da celebração religiosa; é um dia em que atravessamos a sombra do
tempo, ousando nos encontrar, face a face, com o coração de nossas lembranças.
Ali, entre lápides silenciosas, sinto que não estamos apenas homenageando quem
já se foi, mas dialogando com o mistério da nossa própria finitude, em busca de
um vislumbre dos limites do que somos.
Este ritual é antigo, pleno de força. Veio com os portugueses, cruzando
oceanos até o Brasil, onde se misturou à fé dos que aqui já viviam e dos que
vieram depois, tornando-se um caldo cultural, um sincretismo único. A devoção
aos Fiéis Defuntos se encontra com as vozes dos ancestrais nas religiões
afro-brasileiras. Entre velas e oferendas, algo maior se manifesta: uma ponte
invisível que costura o passado ao presente, uma teia de memórias sempre
tecida, fio a fio.
Famílias se juntam no
cemitério, ora em silêncio, ora em vozes baixas, contando histórias dos que
partiram. “Os mortos não morrem”, disse Guimarães Rosa, “eles ficam
encantados”. E a frase ganha vida diante de meus olhos, no brilho das
conversas e nos sorrisos contidos ao recordar alguma história de infância que o
ente querido protagonizou. O tempo se curva à lembrança, e uma chama arde não
só nas velas, mas nos corações de quem ficou.
Cada nome gravado nas lápides ressoa como eco de uma vida cheia, uma
soma de sonhos e medos, amores e quedas. Penso na fragilidade de existir, mas
também na beleza que a envolve. Quando visitamos os mortos, não é só a perda
que lamentamos; celebramos também as histórias que juntos trilhamos. Cada flor
deixada, cada vela tremulando ao vento, carrega a promessa de que não
esqueceremos, de que o que fomos juntos ficará enquanto houver memória.
No Brasil, esse sincretismo tão próprio faz do Dia de Finados um
encontro do sagrado com o profano. Nos terreiros de Umbanda, os ancestrais são
lembrados não apenas com tristeza, mas com respeito e gratidão. Diante das
sepulturas, percebo que estamos todos unidos por uma linha invisível que nos
faz humanos, que nos lembra da nossa breve passagem, breve mas repleta de
significados.
“A morte não é nada, eu apenas passei para o outro lado do Caminho”, escreveu Santo Agostinho, talvez nos
oferecendo o consolo que buscamos neste dia. Finados é dia de atravessar
caminhos. De estender a mão ao invisível e sentir a presença de quem já se foi,
de perceber que, embora a morte leve a presença física, ela jamais apagará os
rastros de amor que ficaram. Cada gesto, cada palavra, cada silêncio
partilhado: tudo isso permanece, sutilmente gravado nas lembranças que nos
habitam.
No horizonte do cemitério, crianças correm, tentando entender o sentido
daquele lugar, daquele dia. Elas, com suas risadas e curiosidade, nos lembram
que a vida é um ciclo que se renova. O Dia de Finados é também uma homenagem à
própria vida — ao que fomos e ao que deixaremos de ser, ao legado invisível que
semeamos naqueles que ficam.
Na tarde que avança, as velas tremulam, algumas apagam ao vento, outras
resistem. Assim é a nossa existência: uma chama que se ergue contra o sopro
inevitável do destino. Mas enquanto uma única vela estiver acesa, enquanto
houver memória, os que partiram nunca estarão de todo perdidos. E este é talvez
o maior milagre do Dia de Finados — a certeza de que, mesmo quando a jornada
parece solitária, não caminhamos sós. Estamos todos entrelaçados na delicada
trama do tempo, e a memória nos mantém vivos, mesmo depois do último adeus.
“– O tempo foge, o amor permanece.”