Texto escrito pelo colunista Emerson Miranda
Foi entre as páginas de um livro antigo, desses com lombada quebrada e cheiro de madeira úmida, que reencontrei o passado. Procurava um trecho de Guimarães Rosa, e encontrei a mim mesmo.
A carta caiu devagar — como se já soubesse que ali ainda tinha o direito de existir. Era azulada, dobrada com zelo e marcada por uma caligrafia meio inclinada, daquelas que treinávamos nas folhas do caderno de caligrafia da quarta série. O remetente: Elisângela, Rio de Janeiro, 1995.
Um nome que ficou suspenso na memória por anos, como um livro na estante alta demais, mas impossível de esquecer.
Abri
o envelope com a cautela de quem resgata uma peça arqueológica do próprio
coração. Dentro, a voz de uma menina de dezesseis anos ecoava por frases como:
"Eu não conheço Patrocínio, mas um dia vou aí. Aqui no Rio tem muito prédio e pouca estrela no céu. Como é aí?”
Fechei os olhos. O papel pesou nas mãos. E, de repente, foi como se o tempo se dobrasse sobre si mesmo, como a carta fazia na dobra do envelope. Era 1995 de novo — e eu era alguém que acreditava que uma amizade podia atravessar mil quilômetros num selo de R$ 0,32.
Houve um tempo — e nós estávamos vivos nele — em que se esperava por respostas, literalmente. Um tempo em que o afeto era lento e, por isso mesmo, profundo. Cada carta escrita era um risco: confiar em alguém que talvez nunca se conhecesse. Mas ali havia uma fé branda e obstinada na beleza do encontro.
Éramos Xennials — esse nome meio estranho que nos deram depois, mas que, no fundo, define o que sempre fomos: gente de travessia. Nascemos com o rádio ligado e o telefone de disco girando os dedos. E vimos, com os olhos escancarados, o mundo se digitalizar.
Fomos os últimos a brincar na rua até escurecer e os primeiros a entrar no MSN às seis da tarde. Escrevemos cartas e depois e-mails. Assistimos fita cassete e depois DVD. Tivemos uma infância offline e uma juventude online — o corpo num tempo, e a alma no outro.
Como escreveu Drummond,
> “O passado é lição para se meditar, não para se repetir.”
Mas às vezes, meditar sobre o passado é também reencontrar pedaços de nós que ficaram ali, guardados como um bilhete antigo entre os capítulos de um livro.
Elisângela e eu trocamos sete cartas. Eu me lembrava de três. Ela gostava de Legião Urbana, eu falava de livros. Ela me contou sobre o irmão mais velho que desenhava, eu contei dos meus gatos de estimação. A amizade era simples, despretensiosa, mas imensa. Talvez porque, naquela época, as coisas que levavam tempo para nascer tinham mais chance de durar.
Hoje, as mensagens chegam antes que a emoção amadureça. Os emojis simplificam o que, antes, era construído com palavras escolhidas com cuidado. Há beleza nisso também — mas há perda. Porque a espera ensina. O silêncio entre uma carta e outra era solo fértil para a imaginação, o afeto, a dúvida, a esperança.
Essa geração que somos — nem tão modernos, nem tão antigos — carrega a memória da lentidão como quem guarda uma relíquia.
A carta de Elisângela me fez pensar: o que fizemos com essa delicadeza que um dia cultivamos com tanto zelo? Será que ainda sabemos ser profundos sem sermos imediatistas? Será que ainda escrevemos com a intenção de permanecer?
Nós Xennials, aprendemos a viver com pé em dois séculos e alma em mil direções. Não fomos criados para o excesso de notificações, mas aprendemos a lidar com elas. Somos os que imprimiam trabalhos no Word 97 e hoje editam vídeos no celular. Somos a última geração que lembra do mundo sem senha. E talvez, por isso, sejamos também os mais nostálgicos, porque sabemos o que se perdeu.
E ainda assim, não estamos presos ao ontem. Pelo contrário: entendemos a potência da tecnologia, mas sentimos falta do que havia entre as entrelinhas. Daquilo que não era dito com cliques, mas com sentimento.
Como escreveu Clarice Lispector:
> “Saudade é quando o momento tenta fugir da lembrança para acontecer de novo, e não consegue.”
Guardei a carta de Elisângela de volta ao livro. Não por desinteresse, mas por carinho. O tempo a havia resgatado, e eu a devolvi ao seu altar de silêncio.
Ao fechar o livro, compreendi que a geração a que pertenço não é apenas uma estatística demográfica — é uma encruzilhada poética. Somos aqueles que viveram a despedida do mundo antigo e o batismo do novo.
E no
fundo, guardamos em nós uma convicção singela, mas poderosa: o afeto escrito
à mão nunca envelhece.
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